ALBA
(2001)
Para
Olga,
Hilda
e
Neide,
meus
três arcanjos.
Para
Alexei
Bueno,
Ivan
Junqueira e
Pedro
Lyra.
Para
Cairo
Trindade,
Gilson
Maurity,
Pedro
Tostes,
Ricardo
Ruiz,
Tanussi
Cardoso,
Paula
de Oliveira,
Denizis
Trindade,
Kyvia
Rodrigues,
Renata
Ruiz,
Rosália
Milsztajn,
presentes
em tempos de transformação.
O
TEAR E A TEIA DE THEREZA
Thereza Christina Rocque da Motta não veio à
poesia a passeio, mas a serviço. Ela procura as palavras com volúpia, se deixa
iluminar por sua luz, profana seus mais sagrados mistérios. Poesia não é arte
para iniciantes, mas paixão para iniciados. Alba lembra aquelas auroras boreais
que duram a eternidade inteira e têm o brilho fugaz da vida. Mas lembra,
também, o cogumelo atômico sobre Hiroshima (Hiroshima,
mon amour) – o astro da morte. Porque a artesania de Thereza sobre cada
palavra persegue um processo em todo semelhante ao que desembocou no uso
pacífico da fissão nuclear: primeiramente, a palavra explode como uma reação em
cadeia, fúria e ternura, se sucedendo numa corrente de sensações sem elo
lógico. Depois, ela se junta a outras e aí vem a ciência maior, de retirar do
veneno do cogumelo fatídico o brilho e a energia para expulsar para longe as
trevas e o frio polar.
Luz e calor, sobretudo fulgor, resultam da
leitura dos poemas deste livro. Leitura silente, entre lábios, mas também
leitura de um fôlego só – suspiro e sopro. Thereza é explosiva e lânguida, mas,
sobretudo, é plena e revelada. A poesia dela não esconde: exibe. É daquelas que
represam gestos para liberar emoções. Poesia de bacante e papisa, santa e
prostituta, fêmea e anjo. Água de cântaro rolando pelas sarjetas. Suja de vida,
mas repleta de etéreo. Abre os portões do Éden e nos acompanha numa visita ao
inferno pelas mãos, não de Virgílio, mas de Beatriz. Ela mesma, Beatriz. Ela
mesma, Dante. Ela mesma, musa e artífice. Músculos e sonhos. O tear e a teia de
si mesma para os outros.
José
Nêumanne Pinto
NOTA
DA AUTORA
Alba, escrito entre setembro de 2000 e maio de
2001, que traz a minha produção mais recente, reúne, em sua maioria, textos
mandados por email, respondendo a mensagens e poemas recebidos,
eletronicamente, criando o que passei a chamar de poemails, para caracterizar
poemas escritos dessa forma. Há outros, no entanto, que foram acrescentados ao
livro, feitos em bares ou livrarias, nas madrugadas extensas do Rio, por onde a
poesia navega, seja por mares ou areais.
Resolvi publicá-los antes dos outros livros
já terminados, atendendo ao pedido dos amigos que recebiam os poemails
produzidos quase diariamente. Além de remetê-los, passei também a apresentá-los
nas leituras nos diversos espaços culturais, teatros e cafés. Agradeço a todos
as intervenções e vivência de cada um desses poemas.
TCRM
...essas
manhãs vigilantes,
essas
albas perdidas de azul...
Marco Lucchesi
Porque
tu sabes que é de poesia
minha
vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
que
a teu lado amando,
antes
de ser mulher sou inteira poeta.
E
que teu corpo existe porque o meu
sempre
existiu cantando.
Hilda Hilst
E,
de repente,
o
resumo de tudo é verso.
Márcio Coutinho
Alba
Planto em teu deserto
a tua flor.
Me trouxeste de volta à vida.
Renasço e tinjo meus olhos
de azul.
Se soubesses o que sei, aurora,
não nascerias para mim
mas para a vida inteira.
Olhos garços
Por detrás de
cada sombra
o vento
traz-me o teu rosto.
Roberto Piva
Somos nós
que carregamos
as imagens dentro dos olhos,
mareados,
vertiginosos e esparsos,
luz transida e
esmaecida
sobre o
horizonte ainda pálido que contemplamos.
Somos nós que
carregamos as probabilidades
feito romãs
dentro dos bolsos,
esperando que se
abram
para tingir o ar
com seu aroma.
Teremos sempre
novos mistérios e insondáveis segredos
diante de
janelas abertas sobre o horizonte.
A praia nos
alcança em meio dia
e nossa manhã
ainda não escorreu pela tarde,
procurando outra
seiva para alimentar a noite.
Aguardo, ainda,
paciente,
a vez de
tangermos a vida
com a devoção de
quem acalenta um anjo.
17/09/2000 – 17h10
A mais breve
Para
Paulo Roberto Adalberto
A impermanência
é a justificativa da paixão.
O que vivemos
mais intensamente
tem vida curta,
é efêmero em sua
forma
e permanente em
pensamento.
Aquilo que mais
amamos não fica.
Resta apenas sua
essência irradiada,
as mãos cravadas
no peito,
uma ausência
mais ampla
do que esteve
presente toda uma vida.
A verdadeira é a
mais breve.
A mais curta,
a mais efêmera,
a mais
acidental.
Perfeita.
E dessa
perfeição,
somos as
testemunhas.
A única que não
passa.
15/10/2000 – 19h06
O outro beijo
A ternura dói
como uma chama.
Nei Leandro de
Castro
Meu coração não
se ausenta de tuas carícias sedentas
nem se afasta de
tuas mãos calejadas.
Somos parceiros
de discórdias
testemunhas do
acaso,
visitantes dos
vaticínios
e, mesmo assim,
não trouxemos no
rosto as marcas
que deixam a
fome.
És parceiro de
todas as horas,
oculta mão
aguardando partidas,
os trens de
sempre inaugurando estradas
e, nós, os que
soubemos, antes do momento,
o que restou da
ânsia dos verdadeiros amantes.
Éramos poucos e
raros,
antecipando o
toque no rosto e a grande sede.
Éramos tão novos
e inesperados,
que podíamos ter
feito de tudo e nada fizemos.
Fomos entalhados
como pedra,
sulcos de
esperas ardendo,
nossas vidas,
dois rumos certos,
nossas palavras,
a vida inteira.
5/11/2000 – 15h51
Breve
anunciação
Um corpo é
longo
Félix de Athayde
Ele:
Sempre estarás
envolvida em silêncio.
Sempre terás
essa aura límpida
e carregarás
esse mistério,
um olhar
indecifrável sobre tudo
e uma vaga
contemplação à tua volta.
Ela:
Teu dorso
infinitamente cálido e brando,
teu corpo esguio
e lânguido,
suaves tremores
a trepidar as pálpebras,
teu longo arco
lançando flechas,
pés estirados
sobre a relva,
minhas mãos
vazias de tuas horas largas,
fome e sede
habitadas,
calma de sonhos
antigos,
toda vastidão
permitida e clara.
Ipanema, 5-7/11/2000
Te amo antes de
saber que te amava.
O invisível tece
a teia em silêncio
e nos prende em
seus tentáculos de fera.
Te amava antes
de descobrir-te,
pois para
amar-te bastava ser
a absoluta falta
que preenches.
Teu olhar
transformado em palavra,
voz amada e
inesperada,
abrindo os
sentidos pela fala.
Me inquietas e
te aflijo.
Busco todas as
formas de fazer-te meu
e já o és.
Ao te ver, me
senti
encontrando
minha alma.
Teus olhos
repousam nos meus
e tua boca
dilata os ouvidos,
fazendo-me
atenta ao que dizes.
Deixa que
escureça novamente
o teu olhar e o
que vens buscando
se instale sem
que percebas.
O que somos, há
muito existe
e temos apenas
de redescobri-lo.
Despe teu rosto,
teu dorso,
teu colo, tuas
mãos frágeis
em torno do meu
corpo,
Te avizinha e
faze da hora
o teu tempo,
em que nada te
prende ou te demora.
Sei o que me
basta
e é novo.
Tudo recomeça.
Tua voz rompe a
calidez do instante
e me ouço
falando
sem saber por
que o digo.
Ele:
Meu contínuo
murmurar, minhas preces.
Não te pressinto
nem te aguardo.
Sou mais antigo
em tua mente,
porque habitamos
a anterioridade de tudo.
Somos póstumos
antes de envelhecermos.
Me acolhe em teu
abraço,
porque sou quem
tu queres.
Te busquei toda
uma vida
sem saber quem
eu queria.
Te quero e, ao
mesmo tempo,
não me
pertences.
Minha dor está
em jamais
tocarmos a
eternidade.
Me demoro em
tuas horas e não me atinjo.
Tua serenidade
me assusta.
Serás sempre a
virgem acalentada,
para quem todas
as orações são feitas
e tua perfeição
nunca se esgota.
Meu desejo não é
possuir-te apenas,
mas fazer-te
parte de mim antes de ter-te,
como se
ocupasses um espaço anterior ao meu desejo.
Sinto que me
queres sem reserva ou medo.
Mas a sedução
usa caminhos obscuros
que nem mesmo
conhecemos.
Quando vejo, já
fomos enlaçados
pelo querer do
outro
e nos lançamos
na tenebrosa
senda sem volta,
na eleição do
outro
pelo desejo de
si mesmo.
Ela:
Quando me
pergunto quem és,
é para ter-te
que te seduzo.
Por que haveria
de me dar
senão puder te
possuir?
Sei que me
desejas,
mas minha
vontade não é mais sutil.
Dissimulo para
que me tomes
e assim te
entregues a mim.
Sou soberana do
teu prazer,
a única para
quem a sedução foi feita
e todas as armas
que empregas
te falham.
Ele:
Para que me
seduzes?
Ela:
Para que me
seduzas.
Quero que faças
o que eu faria
em teu lugar.
Ele:
Para que me
queres?
Ela:
Para servir-te e
para que me sirvas.
A solidão é a
mina do desejo.
O que passou
ainda arde em memória
e não te deixa
esquecer.
Te completo para
que me completes.
E para isso
terei de ser inalcançável.
Ele:
Mas quanto mais
te afastas
mais tenho medo
de te perder.
Ela:
Não me afasto
tanto
que não possa
voltar.
Mas, se não me
afastar,
acreditarás que
me tens,
e eu não posso
te dar
essa certeza,
senão me desprezarás.
Ele:
Não te
desprezaria.
Ela:
Dizes isso
agora, pois não tens certeza
de que me tens.
Se te dou essa
certeza, te perderei para sempre.
A paixão se
alimenta da dúvida e da ausência.
Tudo que é
permanente, fenece.
Ele:
Não morrerás
para mim.
Ela:
A única forma de
me manter viva
é não estar
contigo,
senão quando não
esperamos.
Ele:
Mas me tens
quando quiseres.
Por que não
posso ter-te também?
Ela:
Me tens quando
queres.
Mas te faço
esperar um pouco mais
para atiçar teu
desejo.
Tua sedução tem
que te consumir
para que se
torne absoluta.
Nunca te darei
certezas.
Se te der, terei
morrido para ti.
Ele:
Me queres teu?
Ela:
Sim. Porque já
sou tua,
mesmo que não
saibas.
Sei que
atravessarias o mundo por mim.
Mas já fiz isso,
sem que me pedisses.
Para que fosses
meu,
precisei
atrair-te.
Te alcancei
antes que
tivesses me visto.
Mas jamais te
confessaria meu desapego.
Por ti cruzaria
desertos a pé.
O que queres é o
oásis,
que sou eu.
Para mim, és o
deserto,
em profunda
mutação e permanência.
Mas jamais te
darei a resposta que procuras.
Mesmo sendo quem
sempre busquei,
antes mesmo de
saber que existias.
Te mantenho na dúvida
para que tua
paixão sobreviva.
A única certeza
que quero ter
enquanto viver.
Meu olhar arde e
vê a chama em teu olhar.
Da mesma forma
que me olhas,
te desejo.
E teu desejo
flameja.
Me consumo em
teus olhos
Para que te
queimes em meu calor.
Meu corpo te
abrasa
e ardo para
ter-te.
Terás o fogo de
mil velas
para acender o
teu desejo
e mil luzes te
consumirão
sob um céu de
betume.
Te falo de meu
desejo.
E em silêncio me
respondes.
Tuas mãos são as
mais ágeis
e as mais
desejadas.
Ele:
Toca-me e prende-me.
Não me deixes
desviar
ou me afastar de
teu corpo.
Tudo que quero é
que me tenhas
no impossível
abismo
de forças e
frêmitos.
Não me abandones
na solidão
dilacerada
de meu próprio
ser.
Esteja comigo
mesmo quando
estou só.
Ela:
Também não te
deixo,
mesmo que
brinque
com teu desejo.
Quero-te mais,
porque vivo
apenas
para que me
queiras.
Desde menina, me
quis desejada.
Queria que me
vissem inteira.
A bela do
jardim.
Todo desejo
cobrindo as pálpebras,
e os olhos
faiscando minha fúria.
Como aceitar
minha própria tentação?
Não entendia por
que me desejavam,
mesmo que
quisesse.
Não sabia me
deixar possuir,
como possuir
quem eu mais queria.
Como fazer-me
fêmea para ti
sem parecer
vulgar.
Desejar-te do
mesmo modo que me desejas,
tão direto como
tua ereção fulminante.
Aceitar tua
excitação como a que se levanta em mim,
um invisível
membro para penetrar-te também.
E me fartar como
num repasto,
não mais eu o
alimento apenas,
mas o glutão.
Minha fome
trespassada e vencida.
Tu, meu espólio.
Eu, saciada e
plena.
Ao aceitar o teu
desejo, aprendi a gozar o estupro.
Consinto que me
tomes,
me arrebates,
porque é o que quero.
Mesmo que
preferisse
somente o
carinho.
nesse momento.
Torturo-te,
negando-me a ti.
Mas, ao final,
quero que me tenhas
com espasmo e
vontade,
com a mesma
vontade
que tenho de
ter-te.
Até escolher-te,
o que fiz?
Observei
atentamente todos os homens
como amostragem
e, volúvel como
as estações,
mudei minhas
preferências, até descobrir
o que queria,
quem queria
comigo,
aquele que me
dominasse,
mas que, antes,
se deixasse dominar,
alguém que, mais
sábio do que eu,
me fizesse crer
ser eu a dona,
a senhora, a
rainha de todos os seus prazeres,
apenas para
chegar ao meu ouvido
e me dizer: –
Aquieta-te. Sou teu.
Meu deleite está
em seduzir
até descobrir-me
seduzida,
em que descubro
que não possuo
a chave para tua
porta,
mas que tens a
minha.
Me dou por
vencida
tendo vencido
antes,
porque te fazes
meu.
Mas até que isso
ocorra,
percorri todos
os olhares,
até escolher a
ti para seduzir.
Não me importa
quantos se deixem
seduzir por mim.
Nenhum deles
valerá o instante
que passo
contigo,
que quero mais
do que a mim.
Os homens são
presas fáceis,
tolos
encarcerados
em seu
sofrimento de macho.
Assim, quero o
mais forte,
que me traga o
maior prazer
ao me seduzir.
Quero o que
atende
ao seu desejo
com nobreza.
Não se debata
por me querer
e saiba
vencer-me com a paciência
de um monge e
astúcia de um guerreiro.
Aquele que
realmente me quiser, será meu.
Ele:
Não precisaria
amar-te;
Qualquer uma que
amasse
teria o mesmo
sentido abrasante.
Mas, não.
Precisei amar-te
e não entender.
Para duvidar de
mim
e começar a
recontar
os dias a partir
de ti.
Sou novo agora.
Eu precisava
amar-te
para me
conhecer.
Ela:
Te sei,
lábios e mãos.
Tudo que sinto
é teu.
Teria o teu sono
(esfinge do meu
segredo).
Teria tua fala
muda,
Teu verbo raso,
Teu olhar casto
e príncipe.
Teria tua boca
e língua,
corpo cravejado
e santo.
Querer-te faz
parte
da noite abissal
e plúmbea.
Mãos nodosas e
toques frescos.
Querer-te nada
tem de secreto.
Tem de vasto,
voraz.
Para João Augusto de Athayde
Teresópolis, 29-30/04/2001
Sábado
Para José Nêumanne
Para José Nêumanne
É sempre sábado
quando lembro
que o tempo
passa mais rapidamente
do que
conseguimos perceber.
Ainda estou sob
o impacto
de tuas torres e
alabastros
nos poemas de
Espanha.
A paixão é uma
torrente inesgotável
e só ela nos
sacia os desejos.
Quando,
perguntas.
Tento responder
e não me surpreendo.
Quando é tempo
que não descobrimos.
Temos de ser
descobertos.
Isso o torna
ainda mais súbito.
Como um clarão
pela manhã.
Cristalina
manhã.
11/11/2000 – 16h29
Amor
Para Ricardo
Quintana
Respondo-te com
o mesmo calor,
com o mesmo
entusiasmo lançando-se sobre mim.
Respondo-te com
as mesmas palavras longínquas,
o mesmo ardor do
tempo,
que só responde
a perguntas com o silêncio.
Somos os olhos
bravios da tempestade,
o vórtice do
furacão,
a manhã
estrelada de tantas auroras antigas
– memória
restaurada com as mãos ainda leves e breves.
Respondo-te com
o que sei de mais límpido e transparente,
meus cristais
sobre a areia ainda úmida da manhã.
A praia que nos
cerca é fronteiriça
e nos abre os
limites da espera e da vida.
Toda vida está
diante de nossos olhos,
como o mar que
nos aguarda
se o singrarmos.
Partimos para
descobertas irrealizadas,
cruzamos outros
mares por descuido
e voltamos,
exaustos e mudos,
à mesma praia,
à mesma origem,
ao mesmo templo
diante do abismo.
Avançamos sobre
as águas
– cortando a
lâmina fina do esquecimento.
Lembramos quem
somos e o sabemos
Toda vida está
aonde a colocamos,
vibrando a única
melodia
que conhecemos:
amor.
14/11/2000 – 14h36
Ter ou não
ser
Te chamo por
vários nomes
e todos serão
amor.
Não lamente nada
que tudo só parece ser.
O que é, não
sabemos e, se soubéssemos,
seríamos desde
já o fruto pronto a ser colhido.
Não se
precipite.
Não pense que
seus desejos serão esquecidos,
pois todos os
desejos tecem a trama íntima do ser.
Nem tudo cabe
numa vida.
Ela se alarga
toda vez que nos lançamos,
temerosos, na
amplidão que cerca os nossos passos.
Descansemos.
Nada passa sem
ser colhido.
Tudo dá o que é
seu a seu tempo.
As flores
colhidas ao acaso serão mais belas
do que as de
floristas?
Não lamente o
tempo, inexorável,
os minutos que
escorrem sem olharmos para trás.
Não sejamos as
estátuas de sal,
que ficarão
impávidas a mirar a catástrofe.
Avancemos, com
certezas
que só podem ser
trazidas por nós mesmos,
os únicos guias
a seguir atalhos,
a reconhecer,
como a palma da mão,
a trajetória que
nos une nos descaminhos.
17/11/2000 –
19h39
Alba
Neste colo
pousa o poema
que nos
fecundou.
Sylvio Back
Fecunda em mim o
teu poema.
Nasce de carne e
sangue
a penugem que te
envolve novo.
Sê o frescor de
mãos a te embalar
o ventre
minha vida tão
próxima de mim
e tão ausente.
Deixa que nasçam
as palavras
e se convertam
em semente
para depois
saber o que
plantamos.
21/11/2000 – 17h48
Marco
Fúria.
Traças um
caminho sobre mim.
Teus dedos
percorrem minha pele
deixando
vestígios, labaredas
– um manto
extenso e raro.
Tua boca engole
a noite
e devora teu
desejo
mais frágil.
Te consomes em
mim e segues,
explorando o
terreno espesso
e manchado de
teu sêmen.
Partes.
Meu furor te
acompanha.
13/12/2000 – 22h00
Elegia
Ninguém tem o
tempo.
Ele é feito
de eternidades.
Domingos de
Oliveira
Que nada se
compare ao incomparável,
por ser da folha
a razão da árvore.
O que existe sem
o outro, existe ao meio,
meio feito, meio
desfeito.
Nada se iguala
ao mito
– lembrado por
toda eternidade –
reverberando a
paisagem íntima e perfumada,
qual sândalo em
véspera de rito.
Sejam feitas as
coisas mais amadas
e deixadas as
outras ao acaso,
para que quando
passe o tempo,
reste apenas o
que não foi visto.
Guarde-me em teu
olho e em tua boca.
A surpresa de se
sentir
onde não mais
estás presente.
Apenas lembrança
que perdura.
Rio, 16/12/2000 – 13h56
Meu deserto
Tua respiração
– haste alteada
em meus ouvidos –
flutua acima das
nuvens,
e mergulha na
profundidade
das cavernas
submersas.
Damos voz às
asas e ela se alastra,
pilastras
erguidas, estiradas ao céu.
Saudade, dizes.
Tua saudade
transmudada em corpo.
Meu corpo
sobrevoa tua aridez
e te estende sem
limites.
20/12/2000 – 21h35
Somos essas
manhãs
Para João de
Abreu Borges
Os olhos da
noite
espreitam
os muros de
musgo
por onde passam
gatos suspeitos
e lagartixas
apressadas.
Madrugada
adentro
a lua ausculta
o sussurrar
cúmplice
dos pássaros
engaiolados.
Luares prateados
envolvem poemas
vértices
vórtices
votivos.
Lua dia e noite.
Sol noite e dia.
Vivemos
cumplicidades
estreitas
brilhos
candeeiros
chuva fina sobre
os pastos.
O mito dos
índios
avança, os
índios
avançam na
escuridão.
Impossível morte
impossível
silêncio.
Tantos
muitos
fins.
O rosto
desenhado na areia
memória salobra
mares de sal
saudades
guardadas sob os
telhados
aragens das
tempestades
que se
aproximam.
Somos essas
manhãs
em que nada se
avizinha
e somente a
espera habita
os espaços
deixados
por nós mesmos.
Somos essas
esperas
de noites mal
dormidas
e corações que
escutam
outros corações.
Amanhã tudo
melhora.
Não importam
mais
os cuidados, os
mitos,
as perdas, as
faltas,
as falas, as
cotovias
que partiram.
Nada mais
importa
senão o porvir.
25/12/2000 – 02h49
Pós-Natal
Para Gabriela
Ramos de Athayde
Mudou o Natal
e mudei eu.
Mudou o mundo
e todos mudaram.
Quem somos
agora
que nos sabemos
novos?
1.700 Natais
não mudaram o
homem.
Mesmo assim
não somos os
mesmos.
Esperamos
o imutável e o
novo
toda noite
de Natal.
27/12/2000 – 13h00
Talvez
Talvez a lua
espere que a olhem
apenas por um
momento.
Talvez a lua se
esconda e não reflita
sua face sobre
os lagos.
Talvez eu mesma
não veja a lua
nem tua voz
nem teu vôo de
águia.
Talvez não
sejamos senão sopros
de lua sobre a
face das águas.
7/01/2001 – 11h15
Meu segredo e
nosso deserto
Teus caminhos
são meus
apenas em tua
direção.
Habito tuas
horas fartas,
porque as enche
de carinhos.
Somos todos os
seres possíveis num só.
Conténs todas as
órbitas
e orbitas em mim
com teus pensamentos.
Tuas rimas te
falham,
são poucas,
esquece-as.
Nenhum pecado te
atinge
já que és puro e
meu.
Sagra-te por
seres vão.
Sempre um espelho
que me reflita
e te reflita em
mim.
Corpos que
transitam astros
e nós dentro
deles.
Acumulamos
tempo, linhos e ondas.
Completa-te em
mim,
pois naufrago em
teus olhos mareados.
Sabemos apenas o
que nos é dado ver.
Nada vive senão
por fora.
Por dentro já é
eterno.
9/01/2001 – 15h39
Renascido
Há coisas que
nunca sabemos até acontecidas.
Antes que
aconteçam, são insabidas.
Depois, passam a
percorrer
os pequenos
abalos sísmicos
de uma aurora
pessoal.
As lembranças
vazias buscam alentos
em novos momentos
reinventados.
Quando abri-lo
em horizonte
vasto e
destemido?
Lentos olhos
perscrutam
– todo poente é
um acidente.
Ocaso.
Renascido.
16/01/2001 – 19h06
Carta
Para Anne
Morrow Lindbergh (22/06/1906-7/02/2001)
Tua casa,
plena de teus
gestos,
guarda a vida
que tiveste
e nada te restou
senão amá-la.
Tudo teve de ti
o teu silêncio e tuas palavras,
tua voz por
baixo dos livros,
papéis escritos
espalhados,
preenchendo
outra madrugada insone.
Tuas crenças te
fizeram como és.
E tua vida te
trouxe ao termo em que te equilibras
em perfeição.
Salem, Mass, 8/02/2001 – 1h20
Espera
I’ll stop somewhere waiting for you.
Walt Whitman, “Song of myself”
Se soubesse que
me esperava,
não haveria de
parar e esperá-lo também?
Se souber que me
espera,
não haverei de
querê-lo também?
Se sei que me
aguarda,
voltaria o
caminho
e me poria à
escuta de seus passos.
13/03/2001 – 17h17
Um homem
para Bráulio Tavares
Apenas um homem.
Diante de mim,
nu, ereto,
era um barco
singrando ao pôr
do sol.
Imóvel, move-se
por mim
e desce os
cumes,
empunhando
sortilégios,
distanciando-se,
sem olhar para
trás.
Segue meu homem
aonde o levam
seus passos,
agreste, vãos,
colinas,
rio serpenteando
seu caminho,
poços secos de
sua lavoura
abandonada.
Vai e se perde
no horizonte
o meu homem,
que leva o meu
sangue
em seus membros.
Espírito das Artes, 19/03/2001 – 23h10
Fauno
Seremos sempre gregos. E trágicos.
O que ouvia que
me
precipitou?
Fauno correndo
em meio aos
olivais
séquito de
ninfas
a cobrir-te de
flores.
O que eu via que
somente
adivinhei?
Falta-me o gosto
das uvas
sobre teus
lábios
de deus.
20/03/2001 – 15h15
Adorar-te
adoro-te
como adoro
tua boca
em mim
teus beijos
engalfinhados
língua
resfolegante
te beijo
com minhas duas
bocas
ninho
de secretas
torres
marfins
de nosso império
ocluso.
27/03/2001 – 22h20
Flagrante
Para Paulo Mauad
Afeitos aos
beijos,
beijemo-nos.
Não há remorsos
nos beijos
sinceros.
O que é dado
simplesmente,
também pode ser
sempre
festejado.
Beijemos os
versos
os reversos
os motivos diletos
secretos
as esperas
atentas
sonolentas horas
mordendo
lentamente
o vácuo de
nossas mãos.
Não há remorso
possível
onde houver
versos.
E os há.
E haverá.
Flagrantes.
30/03/2001 – 03h37
Dor
A penumbra
me toca o olho
e um rasgo
atravessa a
noite,
mito
em que me
reconheço
sem que tivesse
me visto.
Dor.
Há algo em meu
olhar
que não vejo.
Possuo.
Ouço.
Dilato gestos
contidos
no infinito
absinto
azul de minha
ancestralidade
trágica.
Reencontro.
Sem dor.
Jobi, 10/04/2001 – 02h50
[Artefato]
Para Justo D’Ávila
Da matéria prima
ao arte-fato,
elaboramos
gloriosos modos.
O que temos,
transformamos.
O que somos, é
transformado.
12/04/2001 – 10h48
O que sou
Sou toda, total,
tudo e tanto.
Sem rimas,
certezas,
naquilo que
temos de mais santificado
e puro, no que
temos de humildade e arrimo,
prosseguimento
e alimento.
Vemo-nos vivos
como somos.
13/04/2001 – 2h43
Mirada
Meu tempo é teu.
Mesmo que não
quisesse dá-lo,
me pedes
e te dou.
Não sei que
rosto está oculto,
que face tenho
para mostrar.
Sou esta que
vês.
15/04/2001 – 08h42
E porque somos
Há um sentimento
de riqueza nisso tudo,
um alheamento,
um tecer de ramos,
uma fome de
sombra e luz,
um esgueirar-se,
um olhar furtivo,
reflexos de sol
na água, tua forma, teu beijo.
Há um sentimento
nobre nisso tudo,
uma alegria
contida, um entremear de lábios,
um suspiro,
coisa que não se sabe nem se fala.
Há tudo e não há
nada: tudo está por existir e já existe;
de alguma forma,
ter existido já é completo.
São Paulo, 20/04/2001 – 09h00
Imantado
Para Löis Lancaster
Imantada com teu
desejo
mergulho
em espelhos
d’água
e reflito minhas
mãos
na superfície de
teu colo
cravado de
silêncios.
Tuas palavras
somam-se às minhas
minhas palavras
emprestadas às tuas
erguem-se como
hastes de flores
abissais.
Enormes pétalas
te envolvem
te sorvem
te fazem habitar
o cálice
da flor.
Te anuncio
te consumo
onde me consomes
com teus vãos e
precipícios
seculares
vozes havidas
e onde estarás
presente
à qualquer hora
para que a
eternidade
nos tenha
e nos deixe
passar.
22/04/2001 – 21h10
Querer
Quisera-te
único,
existente.
Quisera-te antes
da febre,
do outono, das
horas.
Quisera-te uma
vez
e me bastar.
25/04/2001 – 15h02
Pan
Pan saca sua
lira
e as ninfas
desfrutam
seu canto.
Eros e Afrodite
passeiam
enquanto.
2/05/2001 – 11h11
Belo
Beijo o belo que
és.
A beleza que
repartimos
É feita de
pequenos movimentos
sísmicos
abalos de
terraplanos
escafandristas
tomando de
assalto
a hibernética
célula do amor.
27/04/2001 – 13h53
Laço
Laça-me
enlaça-me
que quero
ver-te
vertido
comigo.
Laça-me
caça-me
guarda-me
porque já me
tens
contigo.
25/04/2001 – 03h18
Teu mar
Teu beijo
caleidoscópio
antológico
crucial
apaixonado,
apaixonante
sinuosidades
impossíveis
línguas
atordoantes
vertidas em
abismos bucais
lavas, lajes,
lamas
luxúria e
carnaval.
Beijos
sofreguidão arquetípica
beijos cálices
de vinho
lentos largos
longos
lânguidos
nervosos
nevrálgicos
determinantes.
Teu beijo me
emerge
me acende
centelhas
labaredas
louva-deuses
e lanças.
Lavo-me
em teu mar.
8/05/2001 – 04h16
A trama
Vivemos um tempo
de experimentações,
em que a dor
serve de instrumento
e a única
necessidade é esculpi-la.
Trabalhamos o
refugo do tempo,
aquilo que não
cabe em nossas vidas
e pensamos que
única meta é estarmos completos.
Estamos sempre incompletos,
fazendo-nos na
trama mais íntima
como gostaríamos
de ser.
E esquecemos
que, para ser quem somos,
temos de nos
esquecer quem queremos ser.
11/05/2001 – 13h50
Saudade
– Ó vida futura! nós te criaremos.
Carlos Drummond
de Andrade
Tenho saudades
do futuro,
quando ainda
seremos
e quando
haveremos de saber mais.
Tudo que tenho
são palavras
e tudo que sinto
assim me verte
como vinho num
copo,
água da fonte e
gota de orvalho.
Traduzo-me em
palavras,
porque não sei
fazer de outro modo.
Saudades também
de quando
seremos mais do
que somos,
nós que já somos
tudo o que seremos.
18/05/2001 – 18h15
Templares
Amor era o nome de tudo.
Olga Savary
Os ismos e os
íssimos de tudo que escrevo.
Não há
fascinação que não corrompa.
A beleza é um
templo de si mesma.
Nesses mares e
nessas névoas
navegam outras
vidas que carregamos.
Serão memória e
esquecimento.
21/05/2001 – 13h26
DESERTO
...sendo água por fora
as palavras são mares por dentro.
Neide
Archanjo,
in As marinhas
Sob o céu do deserto
O que escuto no
fundo do poço?
A água que se
move
ou a sombra que
estagna o silêncio?
Há tantos poemas
dentro de um mesmo poema.
O que escuto
senão o eco de minha voz?
Meus olhos
exploram a notívaga vaga
e ouvem o ecoar
de outras palavras
extintas.
Mistérios
insondáveis que ouvimos
ao adormecer.
Abro o livro –
tormenta – e afundo
os olhos nas
constelações
que cobrem o
deserto.
Sim, o deserto.
Terra por baixo
e, por cima, o cosmo
a cintilar a
perenidade dos céus.
Enquanto eu
estiver aqui a olhar,
céu de mil
estrelas,
me completo de
luz e me ofusco
na profundidade
do que vejo.
Paisagem que é
música sem instrumentos,
voz sem palavras
a me confortar,
a me dizer o que
nunca soube.
Meus lábios se
movem e beijam
a boca do
infinito,
onde infinitas
canções me invadem
os ouvidos
e me atormentam
o espírito.
Castos são os
beijos sob o céu do deserto.
Bênção
És abençoado por
olhos
que veem, não a
mim,
mas meu outro
rosto,
aquele que te
persegue
em minha
ausência
como se eu
jamais te deixasse,
como se já
tivesses me visto mil vezes,
me amado outras
mil
e beijado
infinitamente
até que o sol se
pusesse
e se elevasse
novamente.
Não me esperes
e não me
queiras:
teu sofrimento
será jamais me ter.
Revés
Me abandonei
aos meus
pensamentos,
traçando um
trajeto ao revés
do sonho,
voltando aos
poucos
à realidade em
que ver
é não saber a
verdade
e sim encher-se
de dúvidas.
Verto o líquido
escasso
de tua ânsia
e pouso as mãos
sobre teu alento,
arrancando-te de
tua própria inanição.
Alimenta-te de
meu sonho
e renasce
na precária
preamar
de teu riso.
Nomeação
Tudo tem seu
nome,
o inominado,
o terrível
semblante de Deus,
a letra esbelta,
a fome, a falta
de vogais
a devorar o nome
ancestral.
Sou, és.
Assim está bem.
Recomecemos.
Amanhecer
Geometria
invertida,
és o trevo de
minhas palavras,
íncubo, fascínio,
cornucópia de
desejos,
reflexo de
minhas marés fartas,
ressaca sobre as
pedras do cais.
Inesperada nau
no deslocamento
dos mares,
polígono
arremetido e belo,
fez sobre a
cabeça altiva,
olhos
semicerrados e cheios,
mãos abandonadas
sobre meu colo:
breve manhã
inalcançada.
Íris
Tua voz
frêmito
pedido
mãos ágeis
rápidas
invadem meus
sentidos,
loucas, não
sabem
por onde
começam,
param, aguardam,
retomam o
movimento
avançam
escutam.
Te ouço.
Meus olhos te
sabem.
Morada
Tua sede é
tamanha
que naufrago no cálice
em que bebes.
Tua sede,
diurna,
me espreita pela
noite
e me aguarda.
Nossos sonhos,
perversões submersas,
a navegar
silábicos mantos,
tramas, viagens,
segredos.
Distâncias que
nos aproximam.
Sou o princípio,
és o fim.
Me ouve, sou
tua,
seja em corpo ou
sem ele.
Teu prazer,
alvo.
Veste-me e
despe-me.
Transita por
mim,
hóspede breve
e habita-me.
Os olhos do deserto
Para Marco Lucchesi
Os olhos do
deserto
e as vagas
circunferências.
Os olhos do
deserto
e as meias luas
aturdidas.
Tudo é pão
celestial
e céu
onipresente.
Estou além de
mim
e tu, além de
ti, és.
Teu opressor,
teu nome,
teu cunho, tua
máscara
sem dono,
tua voz de
marfim partido,
cúspide,
catedral
sem fim.
Um oceano te
inunda
e me afogo em
ti.
Vertentes.
Abóbadas e
tombadilhos.
Letras e Expressões, 3/03/2001 – 1h30-4h10
Sobre a autora
(Constato) a
insubmissão de quem não obedece a nenhuma rígida cronologia, imposta pela
lógica formal ou pela linearidade narrativa, mas que, ao contrário, utiliza-se
da superposição de suas opções líricas, para construir uma sucessão se
fenômenos, particular e universal, não seqüencial, às vezes apenas
intuitivamente sugerida, embora sempre emocionalmente vivenciada. E neste
confronto, entre a realidade e a ficção, Thereza Christina Rocque da Motta faz
com que surja, através de seus versos, uma nova dimensionalidade feita da fusão
do milenar com o contemporâneo, do atávico e do imemorial com as
multipossibilidades da “faísca quântica poética”, materializadas na grandeza de
cada gesto simples, de infinita amplitude.
Leila Míccolis
In Sabbath, setembro de 1998
Thereza
Christina Rocque da Motta vem mostrando, entre outras qualidades literárias,
consistência e integridade. Sua poesia se move, enriquecendo-se e ganhando em
refinamento, enquanto permanece a mesma, imediatamente reconhecível em aspecto
essenciais. Mostra-nos uma autora lírica, nas duas acepções do termo: na
temática e na escrita na primeira pessoa, a partir do sujeito, do Eu romântico.
A experiência amorosa sempre é identificada, neste e nos livros anteriores, à
concretização do mito, de outra dimensão da realidade e outra escala do tempo e
à realização da própria poesia.
Claudio Willer
In Sabbath, setembro de 1998
Joio & trigo não é propriamente
poesia mítica nem cosmogonia estruturada, porém mais uma poesia pré-mítica.
Neste e em textos anteriores da mesma autora, há um tender em direção ao
mítico, um ritual propiciatório e uma reflexão sobre as contradições entre o
poeta e a sociedade, sobre a possibilidade de uma (que também é anti-mítica, já
que a ideologia da nossa sociedade está permeada pelos seus próprios mitos),
através da erotização da linguagem (e da sacralização e poetização do erótico,
evidentemente). Um texto como Joio & trigo apresenta interesse não só por
seus indiscutíveis méritos literários, mas também como narrativa alegórica de
uma viagem, de uma travessia por esta paisagem humana, onde há pessoas que
dialogam, se encontram, transam e se amam.
Claudio Willer
In Joio & trigo, abril de 1982
(Nela) torna-se
visibilíssimo o papel da sensibilidade na criação poética, muito embora uma
família de poetas maiores, de Baudelaire a Valéry, o tenha acoimado de
precário, e haja lançado sobre ele uma convulsiva desconfiança. Os poemas de
Thereza Christina apóiam-se nas emoções de um cotidiano biográfico, de ordem
episódica ou circunstancial, mas sua validez é tanta quanto o processo de
humanização e, em certo sentido, os torna intencionais. O que quer dizer: os
poemas, estribando-se numa experiência interna, constituem-se num discurso
caleidoscópico, onde cada fragmento revela algo: a lembrança de um rosto, a
revisitação de uma cidade, o mistério da noite, enfim, fragmentos que se lhe
filtram nos poemas, tornando-os autônomos entre si,e, ao mesmo tempo, consoante
a contemplatividade que os enriquece, marcados de unidade existencial. Nesse
teor significativo e esteticizante, alinham-se poemas que traduzem o
coeficiente lírico de Thereza Christina, da sua natureza profundamente
feminina, poemas que se fazem valores permanentes: da autora para a Poesia; da
Poesia para a existência.
Carlos
Burlamáqui Köpke
In Relógio de Sol, Outubro de 1980
Thereza
Christina tem a face de seus poemas: lunar, com o seu quê de penumbra no
branco, com suas explosões tão súbitas, subvertendo o ritmo contido. Poesia
cósmica e interior, alquimia de sentimento e paisagem, luz e sombra, é o
microcosmo refletindo o macrocosmo num jogo de ser passivo, forte e suavemente
feminino, espelho de uma luz vivíssima.
A postura
essencial de seus poemas bem poderia ser traduzida na imagem da orante
atemporal, impregnada de fé na beleza, através do sofrimento e frêmito.
Dora Ferreira da
Silva
In Papel Arroz, abril de 1981
A escrita de
Thereza Christina, ao contrário da escrita automática dos surrealistas, não
busca a abundância e o desbordamento, mas a contenção, metáfora do cioso
controle que os amantes pretendem exercer sobre o incontrolável da experiência
amorosa. É que o amor absoluto, o surrealista ou o mais antigo, se alimenta
sempre de paradoxos.
Carlos Felipe
Moisés
In Areal, dezembro de 1995
Ah, Thereza
Christina, pura, profana, libertina, irreal, realeza Thereza, vício, altar de
sacrifícios, as tuas fúrias, o teu furor poético,a pele sensível da poesia que
teus dedos percorrem, os lençóis semeados e seminados pelos teus versos, a tua
poesia me invade nesta tarde fria como a melancolia de repente transmudada:
quente como um ventre.
Nei Leandro de
Castro
Rio, 19/12/2000
Muito linda a
sua poesia. A eternidade por dentro. É forte.
Mano Melo
Rio, 09/01/2001
Muito bonito o
poema. Continue enviando, embora às vezes eu não responda – mas os li. Acho que
o calor carioca tem feito um bem danado à sua inspiração, sobretudo ao poético
fervor da sensualidade.
Roniwalter
Jatobá
São Paulo,
19/12/2000
Terremotante e
terremotada amiga: saiba que sempre gostei de seu trabalho, mas estes que acabo
de ler são de perder o fôlego, e me deixaram assim confuso e perplexo com a
intensidade de suas linhas sísmicas, com a força de seus segredos, com a sua
absoluta forma de dizer e de amar, de carne e transcendência, de ar e de
fogo... fiquei impressionado... e mais coisas poderia dizer... da límpida
expressão e do estranho, insólito sentimento que seus poemas despertam em
minhas terras desoladas ou quase ou nem tanto...seria longo dizer a energia, a
eletricidade, Eros e Thanatos, presente em seus poemas... Saiba Thereza, que
suas linhas ainda trabalham, mesmo e principalmente, depois da leitura...
Marco Lucchesi
Rio, 10/03/2001
Creio que a vida
nos pede pouco: calma e poesia; sem método, talvez; com um pouco de medo,
decerto; mas ela só nos pede que sejamos um pouco do outro à nossa frente, ao
nosso redor, pra que possamos olhar melhor para nós mesmos e nos amar nesse mar
infinito que é o nosso sangue. Beije, ame, abrace, doe-se e deixe-se doer
também, por que não? A vida é sempre maior do que qualquer arranhão; aliás, a
vida é mesmo esse arranhão, essa faca, essa dor que nos alimenta e nos faz
crescer como sementes. A vida é a dor pelo avesso (como um dia disse num poema)
– há que se encontrar a Luz!
Tanussi Cardoso
Rio, 17/05/2001
(Orelha)
Uma poesia
A poesia que tem vida eterna, nada sabe do
descritivo e do sentimental. Em nosso tempo, ignora as vanguardas que definham
depressa e se sucedem excomungando as que vieram antes. A poesia que permanece
é a que atravessa indiferente o maneirismo, tendo o olho aguçado e a mente
vazia como únicos instrumentos, atenta às dores e aos deleites humanos, mas com
o coração enamorado do amor transcendente. Essa poesia, cada vez mais rara em
nosso tempo, é verdade que cuida da entrega e da posse que fazem parte da
loucura humana, mas volta-se também para a paixão divina, que um dia termina em
silêncio, esse mistério. A poesia mais recente de Thereza Christina Motta é
feita dessa matéria, que ela trabalha com paciência iluminada no cadinho do
cotidiano mais comum, sem as pompas do mundo e a vanglória da modernidade. Para
ela, a poesia é vocação, não um destino. É seu modo de viver, nunca uma
escolha. É sua maneira de ser no mundo, nada mais que isso. Desse modo, sua poesia
tem, na serenidade e na simetria que a regulam, a dose certa da loucura humana
e a exata medida da paixão divina.
Luiz Carlos Lisboa
Princeton, N.J., maio de 2001
Thereza Christina Rocque da Motta é
paulistana e nasceu em 1957. É advogada, tradutora, professora de inglês e
editora da Ibis Libris, fundada no Rio de Janeiro em 2000. Foi chefe de
pesquisa do Guinness Book, o livro dos
Recordes (1982), Editora Três, onde trabalhou até 1995. Em 1980, fundou, em
São Paulo, o Grupo Poeco-Só Poesia e
lançou as antologias ensaio I, II, III, IV e V. Tem cinco livros publicados: Relógio de Sol (1980), Joio & Trigo (1982), Areal (1995) e Sabbath (1998) e o pôster-poema Décima
Lua (1983). Faz parte da antologia de poesia erótica Carne Viva (1984) e Antologia
da Nova Poesia Brasileira (1992), organizadas por Olga Savary e da Antologia de Poesia Contemporânea Brasileira
(2000), editada por Álvaro Alves de Faria, pela alma Azul, de Portugal. Tem
mais seis, inéditos: Odysseus, O Livro de
Pandora, Lilases, Lazúli, amado, Chiaroscuro – Poems in the Dark, em
inglês. Fez traduções para as editoras Rosa dos Tempos (1992) e Lacerda (2000).
Participou das leituras da Ponte Poética
(Ed. 7 Letras, 1995), idealizada por Claufe Rodrigues e Claudio Willer, com
poetas do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre eles, Roberto Piva, Mano Melo,
Chacal, Denise Emmer, Alexei Bueno, Ivan Junqueira, Geraldinho Carneiro,
Roberto Bicelli, Eduardo Alves da Costa, Armando Freitas Filho, entre outros e
do Poesia 96 e 97, promovidas pela
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Vive no Rio, onde participa de
diversas leituras, entre elas, Segundas
com Arte, coordenadas por Tanussi Cardoso, no Espírito das Artes, na Cobal
Humaitá, ConVerso no Café, do grupo Poesia Simplesmente, no Teatro Gláucio
Gil, em Copacabana, com quem participou do I e II Festival Carioca de Poesia,
em 1999 e 2000, Santa Poesia,
organizado por Cleide Barcellos, no Casarão Hermê, em Santa Teresa, Panorama da Palavra, criado por Helena
Ortiz, no Teatro Candido Mendes, em Ipanema e Novos Sentidos, de Elaine Pauvolid, na Livraria Berinjela, no
centro do Rio. Coordena, desde setembro de 2000, com Ricardo Ruiz e Gilson
Maurity, o evento quinzenal Ponte de
Versos, na Livraria Ponte de Tábuas, no Jardim Botânico. Publicou, em 2000,
pela Ibis Libris, Poesia Profana de
Ricardo Ruiz e Poemas Cariocas,
reunindo 47 poetas residentes no Rio de Janeiro.